Norbert Kraft - Guitar Concertos
Hodiernamente é com consternadora regularidade que se pode notar certo descompasso entre a música clássica e sua audiência. Com efeito, acurando-se um pouco o estudo, o que exige certa cautela para que não se emitam opiniões taxativas e tendenciosas, vê-se, pois, que a música erudita é estranhamente segregada dos meios culturais massificadores. Certamente, não há como tornar um discurso tão compósito como o da música erudita em algo massificado, genérico e, por consequência, descartável. Mas esse sempre foi (é e ainda será) um ponto que erige grande celeuma no universo da música.
De qualquer modo, quando ainda era um diletante – de fato, nunca o deixei de ser; mas hoje conservo, digamos, um maior discernimento e criticidade em relação ao que ouço – me impressionou deveras a audição de tal concerto, em que um excêntrico musicista empunhava um instrumento conhecido, em uma então inconcebível posição. O fato é que a música que dali espraiou-se foi de tal forma hipnotizante e mirífica, que compreendi a razão da dificuldade em se apreender todos os meandros da arte das seis cordas. A peça era, por suposto, o famigerado Concierto de Aranjuez.
Indubitavelmente, o executante de tal distinto e saudoso momento de minha pregressa existência era ignoto – e talvez o continue sendo. Não obstante, a pluralidade e ousadia da peça ficou-me indelével na memória. Ulteriormente a esse idílico momento, tive a oportunidade de vislumbrar uma execução dos concertos para violão do extático Villa Lobos. O movimento Cadenza (Andatino e Andante) é especialmente magnífico. Ali tive a certeza de que a música erudita era, imperativamente, a grande força que demove o nosso pantalifúsio universo. Pois que lancei o repto: já que a música clássica não recebe lá a sua devida e mais do que merecida atenção, que se escutem suas mais proeminentes e significativas criações. O óbice é que estamos a falar de um instrumento historicamente segregado e melindrado dos grandes palcos e afins.
De qualquer modo, como puderam vislumbrar pelo título, hoje teremos o grande prazer e desmesurada honra de empreender uma audição desses variados concertos. Extraiamos daí, pois, nossas conclusões – que certamente enaltecerão tanto violonista quanto compositores.
Pressuponho, salvo engano (como diria um grande crítico) que já lhes trouxe em outra oportunidade um álbum do virtuoso Norbert Kraft. Naquela ocasião lhes direcionava para as críticas (indevidas, a meu ver) que esse intérprete sofria por gravar composições de Villa Lobos. Eis que novamente ele o faz, e com a mesma qualidade e maestria. É de se notar o grande acuro da produção deste álbum, gravado, truisticamente, em conjunto com a célebre northern chamber orchestra, que conserva o igualmente notável violinista Nicholas Ward como seu diretor. De fato, a soma dos elementos não poderia produzir música mais vigorosa, espontânea e jubilosa. O programa traz obras de três compositores distintos, que revelam diferentes momentos da música de concerto produzida para o violão – o que denota, por si só, a extrema dificuldade do repertório e imprescindibilidade do conhecimento acerca da arte das seis cordas.
Mario Castelnuovo-Tedesco, Joaquin Rodrigo e Heitor Villa-Lobos. Escalas mais do que céleres, complexo trabalho da mão esquerda, discurso polifônico é o que, entre indefiníveis conceitos, os tais autores rememoram. Sem dúvida, o grau de maturidade musical de um intérprete que se atreva a executá-los deve transcender o que se possa compreender por “alto”. Ademais, é necessária grande desenvoltura com uma orquestra, o que exige anos de prática e um ouvido treinado às matizações das várias vozes. Portanto, não se pode dizer que Kraft não possua qualidades, ao mínimo, apreciáveis. Levo-me a crer, de qualquer forma, que para um violonista com a experiência de Kraft isso não deva lá ser tão complicado – afinal, o repertório de gravações dele é amplamente variado.
Retomando o que no começo expusemos, talvez a música erudita conserve a áurea de “difícil, impenetrável e complexa” apenas por possuir mais virtudes do que defeitos. De fato, é improvável que se enxerguem tantas incongruências nas obras de Villa Lobos ou de Castelnuovo-Tedesco quanto nas de um conjunto de hodierno conjunto de rock. De uma forma ou outra, a produção erudita para o instrumento por nós apreciado não pode e tampouco merece ser olvidada e aviltada. É caso, pois, de que ouçamos a inter-relação estabelecida entre a produção para violão solo e aquela que abrange outros instrumentos. Por suposto, a orquestra sofre certas limitações por estar ao lado de um instrumento como o violão. Entretanto, são potencializados aspectos outros, impossíveis no violão solo, como movimentos mais densos e diversificados, orquestrações concisas e sólidas, etc.
Escutamos, enfim, uma verdadeira inserção do violão num patamar de igualdade com os demais instrumentos. Ademais, a fusão de um violonista maduro e virtuoso com uma orquestra competente e comprometida podia, tão e somente, gerar o álbum que agora irão sensorialmente experienciar. E viva a música erudita, especialmente a produzida para o nobilário violão!
Disclist:
RODRIGO: Concierto de Aranjuez
1 Allegro con spirito
2 Adagio
3 Allegro gentile
VILLA-LOBOS: Concerto for Guitar and Orchestra
4 Allegro preciso
5 Andantino e Andante: Cadenza
6 Allegretto non troppo
CASTELNUOVO-TEDESCO:
Concerto for Guitar and Orchestra No. 1, Op. 99
7 Allegretto
8 Andantino alla romanza
9 Ritmico e cavalleresco - Quasi andante - Tempo I
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