sexta-feira, março 27, 2009

Norbert Kraft - Guitar Concertos

Hodiernamente é com consternadora regularidade que se pode notar certo descompasso entre a música clássica e sua audiência. Com efeito, acurando-se um pouco o estudo, o que exige certa cautela para que não se emitam opiniões taxativas e tendenciosas, vê-se, pois, que a música erudita é estranhamente segregada dos meios culturais massificadores. Certamente, não há como tornar um discurso tão compósito como o da música erudita em algo massificado, genérico e, por consequência, descartável. Mas esse sempre foi (é e ainda será) um ponto que erige grande celeuma no universo da música.

De qualquer modo, quando ainda era um diletante – de fato, nunca o deixei de ser; mas hoje conservo, digamos, um maior discernimento e criticidade em relação ao que ouço – me impressionou deveras a audição de tal concerto, em que um excêntrico musicista empunhava um instrumento conhecido, em uma então inconcebível posição. O fato é que a música que dali espraiou-se foi de tal forma hipnotizante e mirífica, que compreendi a razão da dificuldade em se apreender todos os meandros da arte das seis cordas. A peça era, por suposto, o famigerado Concierto de Aranjuez.

Indubitavelmente, o executante de tal distinto e saudoso momento de minha pregressa existência era ignoto – e talvez o continue sendo. Não obstante, a pluralidade e ousadia da peça ficou-me indelével na memória. Ulteriormente a esse idílico momento, tive a oportunidade de vislumbrar uma execução dos concertos para violão do extático Villa Lobos. O movimento Cadenza (Andatino e Andante) é especialmente magnífico. Ali tive a certeza de que a música erudita era, imperativamente, a grande força que demove o nosso pantalifúsio universo. Pois que lancei o repto: já que a música clássica não recebe lá a sua devida e mais do que merecida atenção, que se escutem suas mais proeminentes e significativas criações. O óbice é que estamos a falar de um instrumento historicamente segregado e melindrado dos grandes palcos e afins.

De qualquer modo, como puderam vislumbrar pelo título, hoje teremos o grande prazer e desmesurada honra de empreender uma audição desses variados concertos. Extraiamos daí, pois, nossas conclusões – que certamente enaltecerão tanto violonista quanto compositores.

Pressuponho, salvo engano (como diria um grande crítico) que já lhes trouxe em outra oportunidade um álbum do virtuoso Norbert Kraft. Naquela ocasião lhes direcionava para as críticas (indevidas, a meu ver) que esse intérprete sofria por gravar composições de Villa Lobos. Eis que novamente ele o faz, e com a mesma qualidade e maestria. É de se notar o grande acuro da produção deste álbum, gravado, truisticamente, em conjunto com a célebre northern chamber orchestra, que conserva o igualmente notável violinista Nicholas Ward como seu diretor. De fato, a soma dos elementos não poderia produzir música mais vigorosa, espontânea e jubilosa. O programa traz obras de três compositores distintos, que revelam diferentes momentos da música de concerto produzida para o violão – o que denota, por si só, a extrema dificuldade do repertório e imprescindibilidade do conhecimento acerca da arte das seis cordas.

Mario Castelnuovo-Tedesco, Joaquin Rodrigo e Heitor Villa-Lobos. Escalas mais do que céleres, complexo trabalho da mão esquerda, discurso polifônico é o que, entre indefiníveis conceitos, os tais autores rememoram. Sem dúvida, o grau de maturidade musical de um intérprete que se atreva a executá-los deve transcender o que se possa compreender por “alto”. Ademais, é necessária grande desenvoltura com uma orquestra, o que exige anos de prática e um ouvido treinado às matizações das várias vozes. Portanto, não se pode dizer que Kraft não possua qualidades, ao mínimo, apreciáveis. Levo-me a crer, de qualquer forma, que para um violonista com a experiência de Kraft isso não deva lá ser tão complicado – afinal, o repertório de gravações dele é amplamente variado.

Retomando o que no começo expusemos, talvez a música erudita conserve a áurea de “difícil, impenetrável e complexa” apenas por possuir mais virtudes do que defeitos. De fato, é improvável que se enxerguem tantas incongruências nas obras de Villa Lobos ou de Castelnuovo-Tedesco quanto nas de um conjunto de hodierno conjunto de rock. De uma forma ou outra, a produção erudita para o instrumento por nós apreciado não pode e tampouco merece ser olvidada e aviltada. É caso, pois, de que ouçamos a inter-relação estabelecida entre a produção para violão solo e aquela que abrange outros instrumentos. Por suposto, a orquestra sofre certas limitações por estar ao lado de um instrumento como o violão. Entretanto, são potencializados aspectos outros, impossíveis no violão solo, como movimentos mais densos e diversificados, orquestrações concisas e sólidas, etc.

Escutamos, enfim, uma verdadeira inserção do violão num patamar de igualdade com os demais instrumentos. Ademais, a fusão de um violonista maduro e virtuoso com uma orquestra competente e comprometida podia, tão e somente, gerar o álbum que agora irão sensorialmente experienciar. E viva a música erudita, especialmente a produzida para o nobilário violão!

Disclist:

RODRIGO: Concierto de Aranjuez

1 Allegro con spirito
2 Adagio
3 Allegro gentile

VILLA-LOBOS: Concerto for Guitar and Orchestra

4 Allegro preciso
5 Andantino e Andante: Cadenza
6 Allegretto non troppo

CASTELNUOVO-TEDESCO:

Concerto for Guitar and Orchestra No. 1, Op. 99

7 Allegretto
8 Andantino alla romanza
9 Ritmico e cavalleresco - Quasi andante - Tempo I


Link: NORBERT KRAFT - GUITAR CONCERTOS.

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sexta-feira, março 20, 2009

Dilermando Reis - Abismo de Rosas

É com real regozijo e inenarrável alegria que, enfim, volto-lhes a escrever neste bom e estimado espaço virtual. Confesso-lhes o quão pungentes e consternados foram os dias que por aqui não pude passar, deixando linhas e álbuns necessários ao espraiamento de nossa nobilária arte das seis cordas. É interessante notar a variedade e multiplicidade de blogs violonísticos que pululam nos virtuais meios tecnicistas. E, ainda assim, existem diversos leitores e freqüentadores deste nosso espaço que estão verdadeiramente ofendidos pelo precipitado e incurioso abandono. Levo-me a crer que sejam imprescindíveis algumas notas explicativas a fim de que não se encete qualquer celeuma.

Para aqueles que dispõem de maior tempo (e paciência, também), a nossa orkutiana comunidade revelou os motivos de minha indesculpável ausência. Lá expus, com a clareza e objetividade que merecem as explicações, os motivos de tão prolongada ausência. Eis que vos trago, pois, ipsis literis, as linhas de outrora e, aproveitando o ensejo, acrescento mais algumas. O fato é que meu velho pai sofreu um grave acidente. Antes que os pruridos leitores se exaltem, eis que vos acalmo. O acidente não foi, de modo algum, irreversível e tampouco envolvendo outros entes. Mas vamos aos fatos: quando asserto ser ele de uma idade já avançada, não estou a utilizar qualquer veleidade discursiva. Pelo contrário, meu demiúrgio progenitor fez 8 decênios em novembro passado. Com efeito, toda família possuí uma pessoa que apresenta avançada e delicada idade. Posto isso, sabem o quão difícil e sensível é a saúde de uma pessoa que apresente tal longo tempo de existência. De qualquer forma, quero crer que os anos se lhe tornaram um tanto quanto insuportáveis e terrivelmente pesados. Meu estimado pai sofreu um enfarto e, no período em que internado se encontrava, mais três AVCs. Não é necessário dizer a profundidade de meu desespero e preocupação. Larguei às drosófilas não apenas nosso estimado espaço virtual, como parte de minha existência pragmática. Graças aos deuses, rezas e pedidos, hoje ele descansa ao som de Dilermandos e Nazareths, que pacientemente executo para ele (ou, em uma leitura menos idílica, ele escuta no computador).

Bem sei que os problemas de minha azafama vida não lhe competem. De qualquer modo, melindrei as vicissitudes daqueles que enxergavam nesse espaço o local de união, de fusão entre interesses semelhantes e esperanças duradouras. Afinal, o derradeiro propósito deste blog, deste o início, foi o de proporcionar para aqueles que (tal qual esse que vos escreve) possuem o indevassável apreço e desmesurada paixão pelas seis cordas violonísticas. Jamais intentei vilipendiá-los. Contudo, por forças maiores do que pude suportar, tive de atentar para necessidades mais prementes, que demandavam soluções. Mas o tempo, como diria o filósofo, é providente. Eis-me aqui, mais uma vez, a lhes embarafustar com tantas linhas e álbuns. Dessa vez, prometo-lhes, será ininterrupto o meu trabalho. Pois que o refundemos!

O álbum de hoje é absolutamente significativo. Como lhes disse anaforicamente, escutei e estudei, durante muitos meses, a obra de Dilermando Reis. É bem verdade que a influência é, como quer Harold Bloom, um exercício de desleitura. Encetei minha vida musical ainda bem jovem, deslumbrado com as possibilidades de sete singelas notas. E como apresentava certa intolerância à vida social, a música como se tornou algo mais do que natural. O violão apenas tornou-se subseqüente. Meu velho pai já há muito apreciava a plenitude harmônica das interpretações do bom Dilermando. E lá fui eu, a estudar a nobre arte das seis cordas, influenciado por meu pai. A desleitura é um processo interessante. Por diversos anos, realmente não compreendia e cheguei ao incompreensível extremo da ojeriza para com Dilermando. Com o tempo, o ouvido vai-se delineando, os professores vão-lhe aprimorando e ... pronto! Dilermando tornou-se uma grande referência e influenciador de muitos estudos.

O álbum que agora vos trago apresenta muitas das qualidades que tornaram Reis conhecido e admirado: repertório exuberante, interpretação penetrante, percepções sonoras verdadeiramente invejosas, enfim, um dos mais caleidoscópios retratos das infinitas possibilidades presentes em seis modestas cordas. Os que já estudaram a suntuosa música brasileira violonística, invariavelmente depararam-se com obras deste virtuoso violonista. Coral del Norte, a segunda faixa deste álbum, é uma delas. Não obstante, tal composição não é de Dilermando Reis, mas sim do egrégio compositor argentino Juan Rodriguez. É interessante atentar para o fato de que tal gravação, à época de Dilermando, não era conhecida pelas América portuguesa. É graças a sua gravação (com algumas pequenas alterações da obra original) que Coral del Norte foi difundida por aqui. Tal composição é magnífica e torna-se ainda mais mirífica na interpretação desse primoroso violonista. O compasso (que aos meus ouvidos soa em 6/8) traz uma sonoridade inconfundivelmente Castelhana, alternada com momentos de certa profundidade, de exploração de distintos acordes. Sem dúvida, essa não é a única peça conhecida: lá estão Magoado, Marcha dos Marinheiros, Uma valsa dois amores, a faixa homônima e outras preciosidades. Como diria um saudoso professor: “apenas o oligofrênico é que não compreenderá a magnitude de Dilermando Reis”. Não sei se concordo com tão hiperbólico pensamento, mas reconheço o poder hipnótico dos dedilhados de Reis. É interessante atentar para as proporções harmônicas da excelente transcrição de Beethoven (sonata ao luar) presente ao final do álbum. Em suma: um álbum para “reinaugurar” nosso bom blog e para deleitar os ouvidos dos queridos leitores. Pois que aproveitem!

Disclist:
01 – Marcha dos Marinheiros
02 – Coral del Norte
03 – Sons de Carrilhões
04 – Noite de Luar
05 – Magoado
06 – Granadina
07 – Abismo de Rosas
08 – Adelita
09 – Tristesse
10 – Uma valsa dois Amores
11 – Sonata ao Luar
12 – Ruas de Espanha

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