A música oitocentista é, de fato, uma das mais expressivas e instigantes de toda a história musical. Indubitavelmente, esse discurso axiomático – quiçá apologético – pode revelar, da parte desse que vos escreve, certa oligofrenia. De forma a tranqüilizar-vos, faremos uma breve, talvez mínima, incursão sobre o aspecto sociológico da música de tais idos.
Fernando Sor, Francisco Tárrega e Dionísio Aguado são, por suposto, uma tríade que remonta aos melhores e mais faustos momentos de nossa amada arte das seis cordas. Não obstante, seria uma incúria e desmesurada irresponsabilidade olvidar nomes como o de I. Albeniz, A. Cano, J.K. Mertz, Schumman, entre incomensuráveis outros. Mas o fato é que o blog é, de certo modo, deveras curto – tal qual a sagacidade desse fúfio ser que vos escreve. Portanto, fiquemos apenas com a tríade anaforicamente citada. As obras do espanhol Fernando Sor foram (são!), na falta de melhor epíteto, absolutamente importantes para o desenvolvimento de todo e qualquer violonista que almeje um maior controle sobre seu instrumento. Prova disso são os famígeros e belíssimos dez estudos, separados pelo egrégio A. Segóvia, há longo e incontável tempo. De fato, os tais estudos mostram um compositor muito afinado com a estética de sua época, que apregoava formas musicais mais expressivas, a par da normatividade e logicidade “estrutural” classicista – além de ensejar a tão estereotipada subjetividade, que apontava para modulações entre tons mais distantes (diferente do que ocorria nos períodos anteriores), com sobrelevada atenção à harmonia e ao ritmo (caso das Op. 6, 31 e 35).
Conterrâneo de Sor, Dionísio Aguado também compôs séries didáticas para o violão, pois sabia da premente necessidade de enaltecer sua demiúrgica arte e de melhor preparar os (poucos, diga-se) violonistas de então. É interessante notar que muitas das reflexões de Aguado sobre a “ergonomia” do instrumento são até hoje utilizadas – levo-me a crer que a mais difundida seja a do preclaro e polêmico apoio para o pé, ou aos mais íntimos, tão-somente “banquinho”. Ademais, várias foram suas contribuições: posições de ataque, reestruturação do cavalete do instrumento, e – segundo dizem alguns – até mesmo os harmônicos oitavados teriam surgido por sua sagaz influência. De todo modo, o que Aguado produziu de verdadeiramente significativo foram suas obras. Além de realizações estéticas verdadeiramente magníficas, são peças didáticas que englobam todo um interessante aspecto do instrumento. Por tal razão, muitas de suas obras – assim como as de Fernando Sor – conservam um alto grau de dificuldade, que são potencializados pelo excelente domínio, do compositor, de seu instrumento.
Francisco Tárrega, instigante e coincidentemente conterrâneo dos dois compositores supracitados, é um caso a parte. Além de dispensar quaisquer apresentações (uma vez que sua vastíssima obra o precede) conserva em suas peças o que de melhor se pode encontrar em nosso feérico instrumento. Por suposto, alguns quererão ver nessas afirmações tão e somente um discurso laudatório ao tal virtuoso compositor, o que não deixará de ser verdade. Contudo, Tárrega não é apenas um grande compositor, instituidor da eufonia nas seis cordas. Com efeito, é possível verificar na obra do ilustre violonista toda uma gama de significantes que, de uma maneira ou outra, conferiram ao instrumento o status quo de que, hodiernamente, ele é detentor. Levo-me a crer que nenhum de vós, caríssimos e nobilários leitores, são caudatários de comparações escusadas e absolutamente escalafobéticas. Há, por certo, comparações necessárias, que apenas engrandecem os objetos cotejados. E eis aí, pois, o caso de Tárrega com os grandes nomes “contemporâneos” (ou, ao menos, com maior proximidade histórica) ao seu. Assertam, destarte, ser o magnífico compositor o que foi um Liszt, um Chopin ou um Schumann para seus instrumentos. Confesso olhar com ressalvas o estabelecimento de tal paralelo. Mas não se pode deixar de reconhecer a virtuosidade e absoluta importância para a história musical de todos os nomes elencados.
Como se pôde perceber, a música produzida sob a égide “oitocentista” – quem sabe “Romântica” – (valendo-se do bom e velho clichê cartesiano) “foi, é e será” muito plural e significativa. Utilizemos, pois, o epíteto de “música do séc. XIX” para nos referirmos à produção citada. A Espanha possui, sem dúvida alguma, uma memória musical absolutamente invejável. E os anos oitocentistas apenas resgataram esse passado fascinante. Desde a auto-afirmação nacional Albeniz (basta nos lembrarmos de Iberia), passando pela expressiva e proficuamente didática obra de Sor e, finalmente, realizando-se plenamente na obra de Francisco Tárrega, o movimento musical que abrange o século XIX – sobremaneira, o Espanhol – é vividamente precioso e estruturalmente imprescindível para as estéticas ulteriores. Lembremo-nos, ainda, da figura de um Manuel de Falla, compositor simbioticamente ligado ao Impressionismo – e, posteriormente, ao neoclassicismo de Stravinski – e que produziu obras de inenarrável importância, como Homenaje. Infaustamente, temos de ficar apenas com o séc. XIX, o que não permite maior incursão sobre a música espanhola.
Talvez esteja acometido por uma sensação incômoda, ou a verdade se encontre irremediavelmente pronunciada, mas parece haver vestígios, nesse texto que por ora escrevo, de que não fui tão claro quanto deveria ou poderia. E isso é bom! Afinal, o nosso escopo, aqui, não é discorrer sobre a historiografia musical oitocentista na Espanha. Antes, é apreciar, criticamente, a interpretação de um virtuoso violonista de tais obras. Norbert Kraft, nesse aspecto, foi providencial. Conseguiu transfigurar para suas interpretações todas as vicissitudes presentes nas entrelinhas de cada estudo de Sor e Aguado, executados com acuro e gravidade. Ademais, as soberbas obras de Tárrega, presentes no álbum, soam maviosamente singulares, em nada deslocadas da atmosfera grandiloquente, faustamente ordinária nas peças desse ilustre compositor.
Seria impossível, diletos leitores, esperar menos de Kraft. Essa asserção parte não somente da apreciação da obra desse prestímano violonista. Antes, decorre da análise de algumas de suas atitudes como cultor da arte das seis cordas. Sem dúvida, a mais sublimar delas foi a criação do selo Guitar Collection, veiculado a renomada gravadora Naxos. Com efeito, não foi Kraft quem de fato desenvolveu tal projeto. Mas é ele quem supervisiona a seleção de obras e intérpretes para tal selo. Não conservo nenhuma queixa para com tais critérios – no que, creio, sou seguido por muitos leitores de nosso bom espaço.
Deixo-vos, pois, com o bom disco. A tenção é que apreciem ainda mais e dilatem a compreensão e magnitude das peças produzidas no século XIX. Confesso-me, assim, um verdadeiro entusiasta desse período musical – sobre o qual, aliás, já escrevi e discorri bastante, quando ainda fazia parte do universo acadêmico. Remeto-vos, pois, a uma precípua leitura acerca do Romantismo musical. Trata-se do excelente ensaio de Bruno Kiefer, intitulado O Romantismo na Música. Eis a referência completa: KIEFER, B. O Romantismo na música. In: O Romantismo, GUINSBURG, J. Perspectiva, 1985.
Dada a grande extensão do
DISCLIST, reporto-vos ao
LINK onde o podem encontrar.
NORBERT KRAFT – 19th CENTURY GUITAR FAVOURITES.